quinta-feira, 5 de novembro de 2009


São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 2006. Sol escaldante. Ao meio-dia, o vídeo-repórter Entra em um taxi rumo à Vila Santa Maria, na zona norte da cidade. A pauta da oitava vídeo-reportagem da série Samba SP, levada ao ar pelo UOL, era acompanhar os integrantes do Projeto Memória do Samba Paulista em uma reunião com a velha guarda da escola Camisa Verde e Branco.Capitaneado pelos produtores culturais T-Kaçula, 33, Renato Dias. 34, e Ligia Fernandes, 25, o projeto mapeia e registra compositores das velhas guardas das escolas paulistanas. O resultado será uma coleção com 12 CDs e um livro sobre a história do samba de São Paulo.Com o apoio da ONG Sambatá, dirigida pelo músico e produtor Guga Stroeter, o projeto já gravou seis discos da série. São eles: Embaixada do Samba Paulistana, Toniquinho Batuqueiro, Tias Baianas Paulistas, Velha Guarda da Escola de Samba Unidos do Peruche, Velha Guarda da Escola de Samba Nenê de Vila Matilde, e Ideval e Zelão. Os quatro primeiros têm lançamento marcado para março.O local da reunião com a velha guarda da Camisa Verde e Branco foi uma padaria na Vila Santa Maria que tornou-se tradicional ponto de encontro do grupo. Com a exceção de Hailtinho - que não foi ao encontro - e Jamelão - que chegou depois -, já estavam devidamente acomodados, e bebericando, os outros cinco senhores que carregam a memória de boa parte da história da agremiação da Barra Funda.Sob os respeitosos cabelos brancos de Nelson Primo, Mário Luiz, Paulinho, Airton Santa Maria e Dadinho (o único que não tem cabelos brancos, pois é calvo) estava uma simpatia e um bom humor de dar inveja a qualquer "mocidade".Na zona norte, a paixão pelo samba é explícita nas rodas e botecos. As conversas e brincadeiras ressoam bandeiras e orgulhos como nas discussões sobre futebol. De pé, ao lado da mesa da velha guarda, estava um sujeito falastrão, simpatizante da escola de samba Rosas de Ouro, e armado de picardia. "Este ano a Camisa vai cair", troçou. "Que é isso, a gente vem pra ganhar o carnaval", respondeu vigorosamente Paulinho, antes de ponderar, "o Camisa pode até não ganhar o Carnaval, mas com certeza a gente tem o melhor samba".Todos a postos e cessadas as brincadeiras, o produtor T-Kaçula, que também faz parte da ala de músicos da Camisa Verde e Branco, iniciou a reunião. Cuidadosamente, ele explicou os propósitos do projeto e ao final destacou, orgulhoso, que o convite para participar do Memória do Samba Paulista é "pela importância que a velha guarda da Camisa Verde e Branco representa para a história do samba de São Paulo, e pra estender mais, pela importância que a velha guarda representa para a história do samba brasileiro."A importância destacada por T-Kaçula reflete a longa história da escola. Em 1914, Dionísio Barbosa fundou o grupo carnavalesco Barra Funda, o primeiro cordão da cidade de São Paulo. O grupo, que saía nos carnavais com os integrantes vestidos com camisas verdes e calças brancas, teve suas atividades interrompidas em 1936. Em 1953, Inocêncio Tobias, o "Mulata", reuniu foliões que haviam dispersado do Barra Funda e dissidentes do cordão Campos Elíseos para fundar o cordão Camisa Verde e Branco. A nova agremiação sagrou-se campeã já no primeiro desfile em 1954, com o enredo IV Centenário de São Paulo. Em 1972, o cordão tornou-se escola de samba.Depois que Kaçula apresentou o convite, os senhores da velha guarda manifestaram-se, um a um. Conversa séria, indagações sobre sutilizas jurídicas e contratuais, questões financeiras. O sorriso dos sambistas desapareceu, as testas franziram-se em tom severo e
logo Mario Luiz disse à reportagem, amigável e educadamente: "Por favor, desligue a câmera".A reunião caminhava para o fim, a câmera deitada sobre o colo e o repórter quase em pânico. Afinal de contas, a pauta inicial, como descrito no primeiro parágrafo, "era" acompanhar a reunião do projeto Memória do Samba Paulista com a Velha Guarda da Camisa Verde e Branco. Na verdade, um esforço de se registrar a atuação de gente que busca cobrir uma lacuna colossal da história da cultura popular paulistana.Esse é o preço que se paga quando se sai de casa sem uma pauta fechada, armada em perguntas pré-definidas. "Faltou combinar com os russos", diria o lendário Garrincha. O documentarista Eduardo Coutinho, em entrevista recente à vídeo-reportagem do UOL, ao falar sobre o seu filme "O Fim e o Princípio", disse que esse procedimento (a não pauta) é o que lhe proporciona um encontro desarmado com o entrevistado. Como o sujeito que assina lá em cima não tem a destreza do citado documentarista e a possibilidade do encontro acabara de se desmanchar na mesa de reuniões da padaria do português, a reportagem quase chega ao fim logo no princípio. Quase!Por obra do acaso, alguém da mesa avistou à distância um homenzarrão de quase um metro e noventa a caminhar distraidamente na esquina oposta à da padaria. "Olha lá, olha lá, ó o Tio Mário vindo lá. Filma ele", disse o olheiro da velha guarda. E um outro acresentou, "este é a história do samba".Pois lá vinha uma Memória do Samba Paulista ambulante. Aos 79 anos, Tio Mário caminhava absorto, sob o sol de rachar, e batucava na palma da mão marcando o rítmo de seus passos. Nesse momento, acabou a reunião. O motor da câmera voltou a funcionar, os sorrisos voltaram à mesa e Airton Santa Maria sugeriu: "pega ele chegando lá de fora".Tio Mário veio caminhando no rítmo das palmas, distraído. Quando bateu os olhos no repórter a lhe apontar a câmera assustou-se. Parou desconfiado, manteve uma distância segura e abriu os braços como se dissesse "o que que foi que está me apontando isso?" Quando chegou à mesa, revelou o desconforto do encontro, "o homem chegou de supetão e eu pensei, vou pegar ele. Mas não sei se é canhão ou revolver (a câmera)".Tio Mário, diz que é "barrafundeiro nato, nascido na Barra Funda de baixo". Comandou o movimento de samba nas Perdizes, no morro da Calábria, e é também um dos dissidentes do cordão Campos Elíseos que ajudou Inocêncio Tobias a fundar a Camisa Verde e Branco. "Sou mais velho que a escola", orgulha-se.Um pouco refratário a render as perguntas sobre a sua trajetória no samba, resolveu abrir de outra maneira a sua caixa de memórias. Bateu na mesa e convocou os outros a o acompanharem na cantoria. Fio a fio, teceu uma roda de samba que revelou-se como um momento histórico, segundo T-Kaçula.Crescido entre batuqueiros de tambu e de sambas de umbigada, as composições de Tio Mário têm o inconfundível andamento dos sambas de "pés no chão". As mãos batendo na mesa de lata da padaria e os versos saindo: "Quebra quebra, quebra quebra / Quebra tudo linda flor / Quero ver se tem coragem / De quebrar o nosso amor." Entusiasmado, Airton Santa Maria comenta, "é a batida tradicional, não tem jeito, vem do tambu, da umbidada, do samba paulista".A forma de compor expõe as heranças da cultura africana. Como nas tradições banto, o encantamento e as ligações entre o mundo dos vivos e os antepassados interfere no processo de criação. "Cantador passou na minha cabeça, então eu começo a cantar. Eu levanto a noite e começo a escrever, aí deito e durmo. Levanto de manhã e digo comecei esse samba assim e assim. e passa. Tá guardado aquele negócio lá. Passa dois, três meses e, quando eu penso que não, vem a segunda parte", descreve o decano da Barra Funda.Pelo jeito, o "cantador" passou muitas e muitas vezes pela cabeça de Tio Mário. Um após o outro, na padaria do português, a velha guarda da Camisa Verde e Branco cantou vários sambas dele.Aos poucos, as pessoas foram saindo, a cuidar das vidas. A mesa esvaziou-se. Sobraram o Airton Santa Maria, Tio Mário e o repórter. A convite dos dois, a reportagem foi conhecer um bar, nas proximidades da padaria, que é reduto incontestável de sambistas da zona norte. Lá estavam gentes de vários blocos e escolas da região. Dentro do bar, antes de desligar definitivamente a câmera, ainda foi possível gravar o homenzarrão de 79 anos requebrar lentamente ao som de um agogô.Encerrado o expediente, encostado o cotovelo no balcão, copo de cerveja em punho, foram mais várias horas de conversa. Um sujeito falou longamente sobre o Navio Negreiro, um novo bloco do bairro. No final, previu que a reportagem estava presenciando o nascimento de uma escola de samba. O repórter, a essa altura, já pensava em fundar também uma escola. A Acadêmicos do Cotovelo de Ouro.Como as histórias são infinitas, o espaço é pouco e a memória é seletiva, a vídeo-reportagem pode ser considerada como um lampejo, uma centelha da Memória do Samba Samba Paulista. A narrativa é como os golpes da memória, fragmentada. E os sambas de Tio Mário inesquecíveis.

FONTE SITE UOL MUSIC

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